A Fantástica Jornada do Endurance de Sir Ernest Shackleton

Endurense

O ano era 1914 e os ingleses recentemente haviam perdido uma corrida contra os noruegueses para ver quem chegava primeiro ao ponto mais extremo do Pólo Sul, fincando pé na maior latitude desse hemisfério. Restava, porém, o desafio de conseguir atravessar de um extremo a outro o continente Antártico. A pé, lógico*.

Longe de ser um calouro na região, Sir Ernest Shackleton já havia chefiado duas missões ao Pólo Sul, onde reuniu experiência e reputação necessárias para sua terceira e derradeira epopéia.

Nessa nova empreitada, Shackleton reuniu uma equipe de 27 homens com as mais diversas habilidades, formações, caracteres, temperamentos, ambições. Uma equipe que partira com um objetivo de fazer história com seu pioneirismo, mas que ficou conhecida para sempre por sua bravura, coragem, tenacidade, companheirismo e uma incrível vontade de sobreviver.

Fui apresentado a esse livro pelo Guti que, por começar a velejar antes de aprender a andar, nutre uma natural admiração pelo feito narrado no livro. Jamais conseguirei reproduzir aqui o entusiasmo com que ele me narrou a história que prontamente me atraiu, mas um pequeno resumo dessa incrível jornada dá a dimensão do que Shackleton e seus homens alcançaram:

O Endurance, um navio de madeira (sim, madeira!) construído dois anos antes, partiu da Inglaterra em 8 de agosto de 1914, menos de uma semana depois do início da I Guerra Mundial. Após paradas na Argentina e uma passagem pela ilha de South Georgia, rumou para a Antarctica em 5 de dezembro.

Já no Mar de Weddel, Shackleton e sua tripulação enfrentaram um clima extremamente hostil na Baía de Vahsel, onde em 19/01/1915 uma grossa camada de gelo formou-se em torno do navio, aprisionando-o para sempre.

Com o inverno polar à frente, a expedição preparou-se para longos meses de espera até o verão quando, presumidamente, retomariam a viagem. Mas o intenso frio da região e ventos de mais de 150 km/h mudariam dramaticamente o curso da aventura.

Enclausurados dentro do navio, a tripulação matava o tempo como podia: lendo, cantando, jogando baralho ou xadrez, exercitando-se nas planícies congeladas, brincando com os cães e até jogando futebol no gelo. Para piorar as coisas, o inverno glacial do pólo deixou o Endurance quase quatro meses na mais completa escuridão.

A inapelável pressão exercida pelo gelo nas estruturas do navio chacoalhava-o aterrorizando seus tripulantes, enquanto apavorantes estalos eram ouvidos por todos. No final de outubro, o gelo começou a esmagar o casco do Endurance, esmigalhando-o como uma casca de ovo e levando-o a pique em 21/11/1915. Contando apenas com os três botes salva-vidas levados a bordo, Shackleton e seus homens montaram acampamento (ironicamente batizado de Patience Camp) nos gigantescos blocos de gelo enquanto preparavam um desesperado plano de regresso.

Imensos esquis foram adaptados sob os botes para que eles pudessem ser arrastados até o local mais próximo onde encontrariam terra firme, a 400 quilômetros dali. Após frustradas tentativas de prosseguir viagem, pois não conseguiam avançar mais do que dois quilômetros por dia, resolveram esperar que a correnteza levasse-os sobre os enormes blocos de gelo até a Ilha Paulet, no extremo da Península Antarctica.

Em 17/03/1916, quase dezesseis meses após a partida, a expedição encontrava-se a menos de 100 quilômetros do objetivo. Em 9 de abril, porém, o bloco de gelo onde se encontravam partiu-se, obrigando-os a cobrir o resto do percurso dentro dos botes salva-vidas.

Durante cinco dias os 28 homens enfrentaram o frio cortante da região, chuva e neve intensas além de um mar implacavelmente revolto. Nos dois dias finais, não havia mais água potável a bordo e a limitada ração desprovida de carboidratos transformava a obrigação de remar numa tarefa sobre-humana para os exaustos marujos há 70 horas sem dormir.

Já acampados na Elephant Island – terra firme após quase quinhentos dias no mar – os bravos tripulantes do Endurance precisavam de um novo plano de sobrevivência. Sir Shackleton optou, então, por uma missão desesperada e quase suicida: cruzar o extremo Oceano Atlântico de volta à South Georgia, de onde partiram.

Adaptações e reforços foram feitos ao James Caird, um dos botes salva-vidas, para que Shackleton e mais cinco tripulantes tentassem atingir o novo destino em busca de resgate. Partindo em 24/04/1916, os seis desbravadores enfrentaram por quinze dias o mais traiçoeiro oceano jamais navegado, no mesmo local e data que um cargueiro de 500 toneladas naufragou.

Como se não bastassem as dificuldades naturais da travessia, as bússolas não funcionavam de forma confiável nessa região, dada sua proximidade com um dos pólos magnéticos da Terra. Sendo assim, toda a navegação era à base do primitivo sextante, cartas náuticas e os infalíveis instinto e perícia do neozelandês Frank Worsley.

Suas medições baseadas nas posições do sol, lua e estrelas eram prejudicadas por densos nevoeiros e o incessante revezamento entre chuva e neve.

Junto com as demais informações como direção do vento e das correntezas, Worlsey conseguiu guiar o James Caird precisamente até uma praia deserta da South Georgia onde, extenuados, os seis desembarcaram. Era o dia 8 de maio de 1916.

O desembarque do James Caird deu-se, no entanto, no lado da ilha oposto do local onde ficava a estação baleeira de Stromness. Restava ao grupo atravessar, ainda, gigantescas montanhas cobertas de neve (puta que pariu!). Com Tom Crean e seu GPS humano Worsley, Shackleton caminhou por 36 horas quase ininterruptas até (finalmente!) chegar novamente à civilização.

O momento do reencontro do trio com os incrédulos habitantes da estação norueguesa de Stormness compõe uma das mais emocionantes passagens do livro e marca, também, o início da mais dramática para Sir Shackleton.

Após o resgate dos três integrantes que haviam ficado na outra parte da ilha, Shackleton desesperou-se em frustradas tentativas de organizar uma viagem de volta à Elephant Island para reencontrar os outros 22 companheiros que deixou para trás. Sem o apoio do governo inglês, por demais envolvido nos esforços de guerra, ele apelou aos países sulamericanos suplicando-lhes ajuda para buscar o restante de sua

Nos quatro meses de agonizantes apelos à Inglaterra, Argentina, Chile e Uruguai para organizar a viagem de resgate Shackleton teria, segundo palavras de Worlsey, envelhecido mais do que durante todo o restante da viagem ficando com o rosto todo vincado e completamente grisalho.

Quando finalmente uma expedição teve sucesso, patrocinada pelo governo chileno, o Yelcho apontou no horizonte da Elephant Island em 30 de agosto de 1916, vinte e quatro meses e vinte e dois dias após o início da viagem. Guardadas as devidas proporções, todos os vinte e oito heróis da legendária expedição foram resgatados com saúde. Nenhuma vida foi perdida sob o comando de Sir Ernest Henry Shackleton.

Alguns filmes já foram produzidos sobre essa viagem, dentre eles uma mini-série para TV estrelada por ninguém menos que Kenneth Branagh. Encontrei, ainda, um outro longa-metragem filmado em 2001 no espetacular formato IMAX, chamado Shackleton’s Antarctic Adventure (“A story of ordinary men, under extraordinary circumstances”), cujo empolgante trailer pode ser visto aqui  .

Mapa da Viagem

Essa edição do livro que comprei é ilustrada pelas belíssimas fotos tiradas pelo fotógrafo oficial da expedição Frank Hurley que, equipado com máquinas semelhantes aos lambe-lambe atuais, produziu um riquíssimo registro da aventura, alguns dos quais reproduzi aqui. Aliás, confesso que me arrependi um pouco de ter comprado a versão original pois, mesmo conseguindo ler com facilidade em inglês, os muitos termos técnicos e específicos de navegação me atrapalharam bastante (a versão em português, da Companhia das Letras, chama-se “Endurance: a lendária expedição de Shackleton à Antártida”).

Diversos outros foram escritos sobre essa viagem, inclusive por Shackleton e seus tripulantes. Algumas de suas lições de liderança foram reunidas em Leading at the edge – leadership lessons from the extraordinary saga of Shackleton’s Antarctic Expedition, de Dennis Perkins, aguardando sua vez na fila da minha cabeceira.

Estou muito curioso para entender como Shackleton conseguiu que seus 27 intrépidos tripulantes do Endurance permanecessem unidos durante os dois longos anos de sua jornada.

Como ele teria mantido a moral, a esperança e, especialmente, a saúde física e mental de homens que, por meses a fio, almoçavam foca e jantavam pingüim? De que forma ele foi capaz de evitar o desespero característico da fome, sede, frio e cansaço que os assolava? De que espírito de liderança estava imbuído esse homem em que todos confiavam, respeitavam e obedeciam? Que especial capacidade torna uma pessoa capaz de tal proeza?

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* Para se ter uma idéia do ambicioso projeto de Shackleton, a travessia do continente Antárctico só se concretizou quase quarenta anos depois, liderada pelo explorador britânico Duncan Carse.

Leia aqui em português:

Veja mais Vídeos:

Instituto Polar:

Historia em inglês:

Áudio Book inglês:

Gravações Originais de Áudio:

Documentário completo em inglês:

Ernest Henry Shackleton
(Explorador britânico )
1874 -1922

Sir Ernest Shackleton

Explorador britânico nascido em Kilkea House, County Kildare, Ireland, que realizou grandes expedições à Antártida, juntamente com outros grandes aventureiros como Robertt Falcon Scott (1868-1912) e Edward Adrian Wilson (1872-1912). Segundo filho de Henry e Henrietta Shackleton, sua família mudou-se para West Hill, Sydenham, England (1885) e dois anos mais tarde ele entrou para o Dulwich College. Deixou Dulwich (1890) para juntar-se a North Western Shipping Company como marinheiro e no ano seguinte partiu para a Antártida, em expedição exploratória chamada National Antarctic Expedition, chefiada por Robert Scott. Na volta foi nomeado (1904) secretário do tesouro da Royal Scottish Geographical Society. Casou (1904) com Emily Dorman, em Christ Church, Westminster. Voltando às expedições, conduziu (1907) a British Antarctic Expedition, partindo de Torquay, na sua segunda expedição à Antártica, a bordo do Nimrod, iniciando uma seqüência de expedições, inclusive chegando (1909) o Pólo Magnético Sul da Terra. Chefiou uma terceira expedição (1914), a Imperial Trans-Antarctic Expedition, partindo de Plymouth, no Endurance. Não parou mais de navegar até que morreu em sua cabine a bordo do Quest, em Grytviken, cidade em cujo cemitério foi enterrado.

 

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